segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Nómada mental

no deserto pairam aves
em busca do meu corpo decomposto
que mora numa cave fechada
a mil chaves e nunca por mim foi descoberto.

já percorreu aprisionado
mil oceanos, deu à costa em vários mares,
afogou-se no sal das águas
e morou em silêncio nos corais.

correu estradas
bosques, viu homens e animais
viu crianças e parou
num país à beira mar.

agora escreve no frio
do prédio no sexto andar,
morreu ou estará vivo
o meu corpo, triste, sombrio.

Joaquim Salgueiro

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

filosoficisses.

inauguram-se ventos
e levantam-se as bandeiras,
procuram-se homens e mulheres
de alma cheia,
fecha-se a porta a mentes sãs ou pouco crentes,
entra-se agora num mundo
onde nada parece diferente.
a âncora pode estar prestes a levantar
e o adeus pode vir com a lágrima
juntar mais sal ao pouco que tem o mar,
os lenços caem em sinal de adeus
e toalhas sujas ficam em terra, ao fundo a ver,
os tios e avós querem mais fama
e a mulher quer mais uma carta
escrita na cama,
os amigos vinhos de outras terras
e a amante um anel da rara pedra.
calma gente, a viagem ainda nem se deu
e o céu escuro é preto e meu,
outros sonhos surgem
quando um sonhador nasce,
mas um mergulho profundo
neste sítio imundo
enaltece qualquer bondade.
brilha sol, é ultima vez que o fazes.
quando acordar, nunca terei vivido
e cada dia é o melhor
se nenhum outro tiver acontecido,
despede-te já de mim...
amanhã esqueci-me que existo.

Joaquim Salgueiro

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O prometido futuro.

Por entre muralhas
que cercam distâncias
e torturam paixão,
não sei se sim,
só sei que não.
nunca te vi, apesar
de correr todas as noites
estradas sem fim
e cair de penhascos
irreais, apesar de todos os dias
mandar beijos para o ar
e esperar que eles voem
até verem os teus lábios.

seja um dia
futuro e eu estarei contigo,
seja um dia o prometido
e nunca serei o mesmo.

qual o mal de querer?
e de sentir,
de quando em vez,
a tua falta?
mesmo sem nunca te ter,
sei que voltarás
por um caminho
nunca pisado.
Um dia será o prometido futuro.

Joaquim Salgueiro

A erva

Algures no monte
existe a erva com a forma
do meu ser, deformada,
deprimida, bela e a morrer.
Algures no céu,
as nuvens páram só para ver
e criam trevas acomuladas
de sonhos empilhados, por uma erva
em forma de eu.
Algures no estábulo,
o animal lembra-se das nuves,
que de tanto parar ficaram escuras,
por uma erva que não teve coragem de comer.
Algures na cama, entre vales e lençois,
o homem estranha o olhar vago dos animais,
só porque uma erva nasceu em forma
disforme e o céu a admirou.
Algures na minha mente,
eu adormeço a pensar neste quadro
verde escuro, com focos baratos e pouco seguros,
choro sem fim, por uma forma que não devia haver.

Joaquim Salgueiro

terça-feira, 7 de setembro de 2010

I.

Apagas-te uma vela que ardia muito
mas devagar,
e fiquei sem luz, sem fogo
e sem expressão.
Acabou-se a caneta, o papel
e a tinta preta
as lágrimas e a prata dos castiçais...

Vendi tudo ao diabo,
fogo e água com sal
quis o teu bem pelo meu mal
e nem assim o vento te deixou ficar...

Dividi o coração em mil partes
deixei-tas à porta do quarto,
ou debaixo da tua cama
ou em cima
ou sentadas no sofá
até na mesa da cozinha,
estão todas por encontrar...

Foram-se o beijos,
onde os posso ir buscar?
Foram-se os "amo-te",
quando vão decidir voltar?
Foi-se tudo e eu não sei mais que escrever...
Foste... foste e sinto a falta de te ter...

Joaquim Salgueiro

domingo, 8 de agosto de 2010

atirei-o do prédio a baixo

atirei-o do prédio a baixo,
onde já cheirei mil vezes
a almofada que não tem cheiro,
e desembrulhei, sempre lento,
prendas que estão num quarto vazio,
sem luz, sem prendas, sem luz
e muito menos prendas...

atirei-o com força,
para não poder voar de volta,
ou passar pelas grades que
me impedem a mim de planar.
muita força, tanta que senti,
tão de repente, um baque mesmo entre mãos...

olho-te do prédio de um andar
que construí sozinho, em tempos,
há muito tempo atrás,
sem ajuda, por mim só,
estou tão sozinho... até a mim me meto dó,
sem um pequeno empurrão,
só eu te contruí, sim, falo
para ti prédio, só eu te vejo
na minha imaginação...

está no fim, por fim, chega ao final,
a rua que existe
mas existe mal
mostra-me o coração
no fundo da rua,
partido,
e sei que não o posso recuprar,
foi embora e não voltou a voar...
foi embora... foi...

Joaquim Salgueiro

O dia em que a caravana passou

Venham, venham todos!
Chegou o mestre encenador
a caravana e o animal pintor
o teatro está na cidade!
O espectáculo o drama e cor
risos e improvisos
faltas de atenção ou espectadores
subam, olhem a altura do actor
o beijo e o sangue derramado
da faca que especta sem dor!
Arregalem a vista
se podem ver não hesitem
tal cenário não é para todos
estão cá vacas, cabras e cabr...
ões, ratos nos bastidores
e pedaços de tecto no chão.
Sonhem! Alcancem estrelas
planetas até o sol! Fujam
por vielas e evitem violações!
Rápido
Rápido
Arde o teatro e a caravana,
arde o cão o bispo e a rata que
está com ele
os homens
as mulheres
Ai, peça infernal
que demoniza gentes e multidões!

Esqueçam, passou a caravana
seguiu e deixou um resto de perfume
que fará lembrar
o dia que o poeta nas ruas gritou:
"Venham, venham todos!"

Joaquim Salgueiro

sábado, 31 de julho de 2010

O que se ganhou Feio...

Quem não brinca
nunca antes brincou,
e se não ri, nunca o exprimentou,
quem não sente a treta,
nunca te viu.

Nunca direi Feio em voz alta,
mas por debaixo da cama
onde o filme está guardado,
treta de sobra
toda espalhada. O riso ficou
na caixa, a treta no caixão,
a vida continua igual...

Talvez nunca vás embora,
embora às vezes seja preciso,
quanto homem foste, quantos risos
fizeste sair. Verdade,
nem o riso do planeta inteiro
te iria fazer parar. O que se perdeu
já lá vai, o pior foi o que se ganhou.
Saudade Feio, muita saudade...

Joaquim Salgueiro

Talvez um dia me sente, finalmente, em frente ao palco dele. Um génio. (1954-2010)


Mais vale escrever

Falta a vontade,
por vezes, só às vezes,
a necessidade de escrever.
Falta a coragem
e o debater,
falta o amor, por vezes a dor,
falta tudo e o mundo
a ver.

Onde já fui?
Porque pensam as crianças
no mal que lhes fiz,
falta-lhes mãe, o pai
também,
e então choram, já nem sei
bem por quem...

Infestei o mundo de poesia
com versos jogados da janela fora,
falta-me inspiração,
falta-me o norte...

Nem o mar, nem o cheiro
a maresia, as ervas que infestam
o caminho já não chegam.
Por isso escrevo, por não saber
que mais fazer.
Afinal, desiludir é sofrer,
e enquanto rasgo pedaços
de uma estrofe metricamente deformada,
escrevo nas paredes,
sofrer por sofrer... ai amor,
mais vale escrever.

Joaquim Salgueiro

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Algo estranho a acontecer

Cá, quem fala é a dor.
Eu sou apenas eu, não me cuido
com primor, não me olho com amor,
quem és, pergunto para mim em cada
ida ao espelho, ele diz

pois, não diz, apenas me olha
da maneira que o olho e ri-se
da maneira que não me rio,
Sofre sem te conheceres
e ama sem temeres, quando a mágoa voltar
já amaste o que havia a amar,
tudo o que fica,
fica por que tem que ficar.

Já nem sei quem sou,
se deliro com um espelho
que direi a um estranho
que nem conheço, que problema
é esse que não esqueço a tua maneira
de falar. Nunca te vi,
deixa-me ajudar. Nunca
mais te falarei, por favor, deixa-me
só sussurrar aquilo que nunca
soube aplicar!

Alto, a noite não pára de crescer.
Talvez nunca saiba o porquê.
Talvez a noite, quando anoiteça
também não pergunte à lua se ela quer
aparecer. Talvez volte a reaparecer.

Joaquim Salgueiro

terça-feira, 25 de maio de 2010

eu trino.

O céu, negro que dói,
faz me chorar sentado,
tronco nu numa cadeira de plástico
choro sozinho,
choro sem lágrimas que transpontem
a tinta que me mancha o papel.

A noite é calma,
tirando o vento que não se cala,
as aves que acasalam,
os cães que jogam uma sueca
em casotas mobiladas,
bichos da noite gritam impropérios
a Deus por este o já os ter feito almas.
A noite é calma,
pois não acalma mais que isto.

O sangue que me saiu dos pulsos
enche de vermelho a sala,
qual pintura, qual dourada talha,
casa de poucos luxos,
sala de vermelho rabiscado.
Qual sala, qual janela, porta ou varanda,
ainda na cave jorro sangue
e já me rouba a alma o Diabo.

(sou nada mais que o choro,
a noite e sangue conjugado,
morri para a vida e ressuscito frustrado,
estou, além de triste, desapontado,
a vida é simples e eu complicado.
Onde pertenço? fico boiando na cave,
enquanto me ouço e olho. todo eu sou
negro, preto e encarnado. Todo
eu já fui. Todo eu cá estou.)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Demência do poeta frustrado

Tenho a minha alma em papel queimado.
Todos os riscos foram apagados
e os traços esquecidos,
a tinta que correu em branco
faleceu com o espelho das emoções
do poeta frustrado.

Tenho a minha vida inacabada.
Só resta a cinza dos rascunhos guardados,
só as caixas ainda fechadas
que a idade nunca abriu.

Tenho o que tiver não sendo nada,
só o cheiro do quarto escuro afumarado
que delicia o cérebro psicopata
do meu garoto fantasma. Olhos
no vazio e voz ruidosamente muda. Tenho
a minha mente
embora louca,
demente.

Joaquim Salgueiro